segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Texto sobre filmes da II Guerra Mundial

Para materializar os comentários sobre os filmes como elementos de análise histórica, publico um comentário muito legal, de um historiador também muito legal (Boris Fausto), que trata dos filmes produzidos por Clint Eastwood sobre a II Guerra Mundial (indicados em nosso blog).

O mito e o horror da luta
Filmes de Clint Eastwood, que estão em cartaz em SP, retratam sem caricaturas episódios centrais da Segunda Guerra
BORIS FAUSTO COLUNISTA DA FOLHA
Iwo Jima, uma inóspita ilha sulfurosa, foi palco de um dos episódios mais dramáticos no oceano Pacífico durante a Segunda Guerra. As forças dos EUA invadiram a ilha, situada a cerca de 1.200 quilômetros de Tóquio, em fevereiro de 1945. A luta durou 36 dias, resultando na morte de 22 mil japoneses e 7.000 americanos.Se a ilha tinha importância estratégica tanto para americanos quanto para japoneses, com relação aos últimos tinha também valor simbólico, pois era a primeira vez que o inimigo tentava ocupar solo japonês.[O diretor] Clint Eastwood narra essa história em dois excelentes filmes : "Flags of Our Fathers" (Bandeiras de Nossos Pais), "traduzido" para o português como "A Conquista da Honra", e "Cartas de Iwo Jima". Seria um engano ver nos filmes, respectivamente, a versão americana e a japonesa do episódio.Eastwood supera esse limite, recusando as versões maniqueístas, de um lado e de outro. Os temas centrais de "A Conquista da Honra" são o mito construído a partir da vitória americana e o contraste entre os homens que participam da guerra e os homens e mulheres que ficam nos EUA, a milhas e milhas de distância do sangrento conflito.Construção do mito O mito nasce do hasteamento da bandeira americana por um punhado de soldados, no topo do monte Suribachi, transformado no episódio final de um ataque vitorioso. Na realidade, o gesto ocorreu no início dos combates, a tal ponto que alguns dos participantes seriam mortos na luta, nos dias seguintes.No afã de revelar os alicerces da construção do mito, Eastwood intercala as cenas da ilha, em que predomina o tom cinzento, com as imagens coloridas da viagem dos sobreviventes através dos EUA, com o objetivo de vender bônus para o esforço de guerra, num momento em que o ânimo da população arrefecia.O contraste é gritante entre o patriotismo ingênuo e manipulável do povo, a esperteza dos comunicadores, a exibição de políticos e homens de negócios e as figuras daqueles rapazes, traumatizados pela guerra.Em meio à euforia da comemoração, revela-se o preconceito contra um dos combatentes -o índio americano Ira Hayes, impedido de entrar num bar e objeto de gracinhas ("Usou a machadinha para matar japoneses?").Outro olharSe "A Conquista da Honra" é um ótimo filme, "Cartas de Iwo Jima" realiza um feito sem paralelo, ao rever o mesmo episódio com os "olhos do outro" -os olhos dos japoneses que, privados de comida e de água, vítimas da diarréia, lutaram até o fim ou se autodespedaçaram.Falado em japonês, com excelentes atores japoneses, o filme imerge tão profundamente na visão do outro que, quando os soldados americanos surgem, já nas últimas cenas da batalha, suas figuras e falas soam dissonantes. Nessa altura, são eles o "outro".Como comparar o comportamento dos americanos e japoneses, tomados os traços mais gerais, diante da guerra? Em poucas palavras, os americanos são mais terra-a-terra, menos embalados por grandes ideais -a luta pela democracia, por exemplo- e mais pela determinação de tentar sair vivo de uma batalha em que o fogo de um inimigo invisível parte de brechas cavadas na pedra.IndivíduosOs japoneses são mais ideológicos, lutando até a morte em nome do imperador, em defesa do solo sagrado do Japão, contra um inimigo que supõem grosseiro e covarde.Mas, quando Eastwood se detém em figuras individuais, dois traços são ressaltados, como diz Ian Buruma, em "Eastwood"s War" (A guerra de Eastwood, na "New York Review of Books" de 15/2/2007). O pragmatismo não equivale a cinismo, como mostra o comportamento heróico de "Doc" Bradley ("Doutor" Bradley), o enfermeiro que, correndo todos os riscos, vai em busca de feridos agonizantes.A sacralidade, por sua vez, não impede a existência de soldados que se recusam a considerar a convocação para a guerra uma honra, os quais, em condições de extremo sofrimento, tratam de salvar a pele, rendendo-se.O personagem-símbolo é aí Saigo, o jovem padeiro que deixou para trás a jovem mulher grávida, desastrado no manejo das armas, perseguido por um oficial sádico. Ou ainda Shimizu -protagonista de uma das poucas cenas em que Eastwood tira os olhos da ilha-, jovem sensível que se recusa a matar o cão de uma família, adorado pelas crianças.Sem caricaturaSaigo se salva, mas Shimizu morre com um farrapo de pano branco nas mãos, vítima desarmada da estupidez de um soldado americano a cuja guarda ele foi confiado.Enquanto em "A Conquista da Honra" Eastwood se preocupa essencialmente com os recrutas, em "Cartas de Iwo Jima" ele elabora também personagens como o general Kuribayashi, magnificamente interpretado por Ken Watanabe.Admirador dos EUA, tendo sido adido militar do Japão em Washington, o general lamenta o conflito e é visto com suspeita por seus pares. Apesar disso, cumpre o dever até o fim, honrando seu pai samurai e seus outros ancestrais, como diz em carta escrita à mulher.Depois das barbaridades de Nagasaki e de Hiroshima, da ocupação do território japonês, a gradativa inserção do Japão no mundo democrático representou um êxito inegável, admitidos todos os percalços políticos, que não são exclusivos daquele país.Que um cineasta americano tenha conseguido realizar um filme em que "o outro" surge sem caricatura, sem preconceito, em toda sua dimensão, é um feito artístico de raro valor. Os aplausos que "Cartas de Iwo Jima" recebeu no Japão são infinitamente mais importantes do que a estatueta do Oscar.
BORIS FAUSTO é historiador e presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras